terça-feira, 30 de outubro de 2007

CINZAS


No fundo a escuridão. Há de se ter esperança?
Um desespero, como o inferno da vida, enche os olhos da mulher, o homem não mostra os seus.
Edvard Munch parece querer nos fazer gritar, entrar em pânico como quem se olha no espelho e não vê nada.
Cinzas. Só isso.
Cinzas: a gama de tonalidas nos remete à opacidade da existência, ao absurdo da constatação do desespero; restos do que foi queimado alude novamente ao desespero, do nada mais poder ser feito, a-ca-ba-do.
Munch não só nos passa suas angústias mas nos faz sentir mais intensamente as nossas.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

LENDO GENTE

Cada dia leio um livro
Nas falas das pessoas que conheço.
Conteúdos obscuros
Que são apenas compreensíveis
Nas notas de rodapés
Escondidas nas atitudes.

sábado, 13 de outubro de 2007

O MAL SOFRIDO: OU “A VIDA É ASSIM”

Todos nós já passamos por alguma forma de sofrimento, a condição humana é a isso suscetível, seja a morte (própria ou de alguém que gostávamos), doença, fome, castigo, injustiça, punição, etc. Em determinados momentos nos questionamos acerca do mal sofrido. Por que o sofremos? Há um propósito? Qual a sua origem? Nosso questionamento é uma defesa contra a complexidade da vida, uma tentativa de negar a noção de que “a vida é assim”.
As tentativas dos autores bíblicos de atribuir o mal sofrido aos seres religiosos – Deus ou Diabo – são amostras do desejo de superá-lo. Se o bem for feito Deus afastará o mal, se o pecado (mal moral) for cometido o mal físico virá. Temos um bom exemplo disso no livro de Gênesis: a serpente foi a responsável pela queda e o ser humano sofreu de Deus as conseqüências. Outro exemplo é o livro de Jó, que mostra o sofrimento de um inocente causado pela disputa entre Deus e o Diabo.
Como já afirmamos, nosso questionamento é uma defesa contra a noção de que “a vida é assim”, não aceitamos um mundo onde a morte seja a única certeza, a doença seja um fantasma que ronda no escuro e a violência seja, muitas vezes, parte do convívio com outras pessoas. Não aceitamos essa situação e para não entrarmos em desespero justificamos o mal elaborando origens. Mesmo entendendo a artificialidade dessas origens insistimos nelas.
A origem do sofrimento, diante do que sofre, é de pequeno valor, este interessa-se mais por soluções práticas que por teorizações. Ricoeur afirma que devemos substituir a pergunta “de onde vem o mal?” por “que fazer contra o mal?”, demonstrando com isso que é impossível desvendar o grande enigma, mas é possível propor alternativas que amenizem o sofrimento. Portanto, as doutrinas da Igreja, os filósofos cristãos que formularam teodicéias e o texto bíblico devem ser lidos em outra perspectiva: com o intuito de extrair princípios de solução para o mal sofrido; devemos, ainda, fazer surgir o sentimento de promoção do bem-estar e amenização do sofrimento, através de, como propôs Ricoeur, novas respostas ao problema, ações éticas e políticas que diminuam a violência e uma espiritualidade baseada na renúncia do desejo (de imortalidade, de recompensa, de libertação pelo sofrimento, etc) e no amor a Deus apesar das circunstâncias.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

ESTÁGIO TERMINAL

A sede lhe seca a garganta e não deixa as palavras saírem, só um som como o rastejar de um corpo. Tem necessidade de falar, de dizer suas últimas palavras. Força a garganta, se espreme. Seus pulmões também já não têm força e com dificuldade suga o ar. Há no seu estômago um doloroso vácuo, uma contração que o enrijece ao máximo e o faz expelir pela boca uma fetidez de fermentação.
Olha para as mangueiras com líquidos que, ligadas ao seu corpo, prolongam sua vida, e para as faces desoladas que o cercam. Imagina o que pensam os donos daqueles amarelos-avermelhados olhos que o vêem: “como ficou feio!”, “coitado!”, “ele era tão alegre!”, “que demora!”. Não sabe se ali estão por piedade, amor ou ódio.
Seus olhos passeiam pelo quarto. Sua imaginação começa a passear por dias à frente quando se vê restabelecido e de volta à mediocridade de seus envolvimentos afetivos. Sua memória passeia por sua história de três dias atrás e lembra-se do momento em que seu corpo se arremessava do sexto andar. Memória e imaginação chocam-se e os limites entre elas tornam-se indefinidos.
Há em sua frente a luz de algum aparelho que pisca constantemente, não sabe se já piscava ou se começou a pouco tempo. Percebe que ocupar-se com a luz causa-lhe sonolência. Talvez seja bom dormir, deixar o tempo passar enquanto está desacordado e quando despertar já estar melhor. Mas, de súbito, surge medo, medo de não estar começando dormir e sim morrer. Seu coração acelera, suas entranhas parecem formigar e seu corpo torna-se como que mais pesado. Pensa em como pode ter medo da morte se há poucos dias a buscou. Não quer morrer. Esforça-se para que os olhos continuem abertos, esforça-se para que a consciência não desvaneça, esforça-se para que sua respiração o agite.
Olha ao redor, tenta desviar da vista a luz que pisca. Olhos amarelos-avermelhados - que estariam pensando? -, mangueiras com líquido. Tenta comunicar-se mas a voz não sai, apenas ele ouve os ruídos do ar passando por sua garganta. Deseja que toquem nele ou que falem alto. Seus olhos vagarosamente baixam as cortinas - olhos amarelos-avermelhados, mangueiras com líquido - fecham-se completamente e ele nem percebe, faz-se escuridão mas não vê, apenas dorme.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

OLHAR PARA O CÉU À NOITE

Há muito tempo não paro para olhar o céu à noite. Às vezes a lua acena, eu olho rapidamente para ela, mas as várias atividades, o céu de cidade grande, as luas artificiais e descartáveis não me permitem olha-la por muito tempo. Quando criança eu gostava de ficar à noite no quintal olhando o piscar das estrelas, a forma que a lua se apresentaria, os astros que riscavam a imensidão e rapidamente desapareciam... Acho que isso um tipo de exercício de espiritualidade, havia um sentimento como aquele do salmista: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos”.
Ademar Paegle, capelão do Seminário Batista do Norte, costumava dizer que Deus convidou Abraão para voltar a ser criança quando disse a ele: “Olha para o céu, e conta as estrelas”. Imagino Abraão, como menino, tentando contar o máximo de estrelas e quanto mais contava mais se dava conta de que sua tarefa era absurda, mas lhe fazia bem. Há muito tempo não conto estrelas, não por medo de verrugas, mas por medo de ser ridículo.
Aí me lembro da jornada dos magos seguindo a estrela que os levaria ao menino prometido, ao rei que eles esperavam e que estava para nascer. Olhando o tempo todo para o céu, procurando uma rota entre as constelações...
Um exercício de espiritualidade: olhar para o céu. Não importa se tem lua ou não, se dá para ver as estrelas, se algumas nuvens cobrem como um véu o infinito. Olhar para o céu é contemplar um espelho em frente a outro espelho e se perder de vista. Certa vez escrevi, após ler o Guardador de rebanhos de Alberto Caeiro:
(...)
E se somos do tamanho
Daquilo que vemos,
Sou enorme,
Sou um mundo.
Se a metrópole
Esconde-nos o horizonte
Força-nos a olhar
Para o céu
E ver de que tamanho
Realmente somos.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

AMOR E JUSTIÇA: O problema do pecado

Apesar de Jesus ter dito que seu ensino se resumia no amor (a Deus e ao próximo) a pregação das igrejas tem ressaltado mais o pecado. O protestantismo brasileiro, influenciado pela teologia dos missionários americanos, oriunda da mesma raiz que algumas décadas mais tarde geraria o fundamentalismo, desde sua hinologia até seu ensino na escola dominical, só compreende o amor de Deus na dimensão do pecado. Sem pecado não há amor de Deus. Esse amor se manifesta na redenção dos pecados através da encarnação e morte de Cristo – manifestação do amor divino pelo ser humano.
Mas, ao mesmo tempo que a cristandade afirma o amor de Deus, afirma também sua justiça. Essa justiça se expressa na condenação dos que estiverem em pecado (é claro que o pecador é sempre aquele que não está de acordo com o ensino oficial, mas essa é uma outra história).

Como podemos conciliar amor e justiça em um único Deus? Quando falamos de condenação de pecados negamos o amor incondicional de Deus. Quando falamos que para o pecado haverá condenação imaginamos um Deus que se esqueceu do amor e não tem escrúpulos em castigar.

Gianni Vattimo nos oferece uma compreensão (que não é nova, mas que se renova) para pecado. Para ele, o único sentido de pecado é o da exclamação “que pecado!” (“que pena!”). Por exemplo: Há dois anos atrás por ocasião do nascimento da minha filha minha mãe foi nos visitar. Num determinado dia resolveu fazer uma de minhas sobremesas favoritas, mas, no momento de pôr na geladeira deixou cair perdendo todo o prato. Minhas palavras e sentimento naquele momento: “Que pecado!”. É claro que esse exemplo não alcança dimensões éticas mas clareia o que quero dizer.
Quais os limites nas nossas relações se a idéia de pecado se resume a um sentimento de perda? O limite é o amor (nesse ponto há uma identificação com o ensino de Jesus, mencionado acima). Sendo guiados por esse parâmetro não há necessidade de uma pregação sobre o pecado.

Deus passa, na dimensão do amor, a não ser compreendido mais como juiz ou algoz, mas como pai, mãe ou amigo. Até porque, como nos lembra Vattimo, perdão apenas para quem está arrependido não traz equilíbrio a situações, por exemplo, de violência extrema. O Deus que aterroriza criancinhas quando cantamos: “Cuidado boquinha no que fala (pezinho no que pisa, mãozinha no que pega, olhinho no que vê), o Salvador do céu está olhando pra você!”, deve ceder lugar ao Deus que conhece nossas limitações e que nos ama acima de tudo, até mesmo da justiça.